O Ninho Dourado do Banco Senior

 


Em um país distante, chamado República do Bananal, chegava o tempo das eleições. O ar quente que dançava sobre as plantações de cacau trazia agora um novo perfume: o da esperança mesclada ao suor das multidões. Nas praças, dois homens disputavam o coração do povo. De um lado, Molusco, com sua voz de trovão doce e promessas de dias melhores; do outro, o Professor Modesto, calculista e silencioso como quem resolve uma equação difícil.

No alto da colina onde repousava o palácio de mármore da Organização Santa das Eleições, Alex Egghead observava o movimento das ruas. Era um homem de semblante tranquilo, mãos finas e convicções profundas. Como Guardião Supremo das Urnas Sagradas, agora incontestáveis por força de uma nova lei, ele não precisava sujar as mãos com votos adulterados. Seu domínio era mais refinado: orquestrar a sinfonia delicada das percepções.

Sua esposa, Serena, organizava naqueles dias um leilão beneficente em sua fundação cultural. Os catálogos, impressos em papel que cheirava a flores secas, traziam discretamente o logotipo do Banco Senior em cada página. O presidente do banco, Cícero Astúcio, compareceu pessoalmente, e entre apertos de mãos e sorrisos de cortesia, trocou com Egghead olhares que valiam mais do que contratos assinados.

Numa sala anexa ao salão do leilão, à luz de um candelabro de cristal, os três homens se encontraram. Molusco, ainda com o brilho dos comícios nos olhos, explicou sua estratégia. “O povo está cansado de números, Egghead. Querem poesia. Vou prometer rios de leite e montanhas de açúcar. Vou jurar que os juros altos são um pesadelo do passado.” Astúcio sorriu, acariciando o copo de cristal. “E nós, que conhecemos os sonhos antes que eles virem pesadelo, nos prepararemos. Enquanto o mercado acredita na poesia, nós compraremos proteção contra a prosa dura que virá.” Egghead apenas assentiu, como um professor que ouve a lição bem estudada.

O triângulo estava selado. Egghead garantiria que o caminho das urnas fosse suave para Molusco. Molusco garantiria os gastos que aqueceriam o povo e esquentariam a inflação. Astúcio garantiria os lucros do Banco Senior, o único que saberia ler nas entrelinhas dos discursos. Quanto a Serena, sua fundação continuaria a receber doações generosas, que pagariam viagens a museus europeus e aquisições de quadros cujo valor parecia crescer como milagre.

A campanha desenrolou-se como um grande espetáculo. Nos palanques, Molusco era um poeta da economia. “Enterrarei a faca dos juros que sangra o trabalhador!” As multidões vibravam, os mercados internacionais murmuravam otimismo, e os analistas previram uma era de crédito farto. Apenas o Banco Senior movia-se na contramão, vendendo ativos sensíveis e comprando proteções como quem compra guarda-chuvas antes da tempestade.

Enquanto isso, na torre de marfim da OSEB, Egghead trabalhava com a paciência de um ourives. Cada decisão, cada comunicado, cada regulamento era lapidado para criar um campo de jogo sutilmente inclinado. Pedidos da oposição eram arquivados sob pilhas de formalismos. Os horários eleitorais mais cobiçados sempre pareciam cair no colo de Molusco por “sorteio técnico”. Quando algum jornalista teimoso começava a farejar as doações do Banco Senior, lembrava-se subitamente de outros compromissos editoriais. O medo não precisava ser dito; bastava pairar no ar.

A vitória chegou por uma margem estreita, tão fina como a linha que separa a sorte do destino. As Urnas Sagradas cantaram o nome de Molusco, e ninguém ousou duvidar do coro eletrônico. Nos primeiros meses, o novo presidente cumpriu sua palavra: os cofres públicos abriram-se em programas sociais, a pobreza recuou momentaneamente, e o povo sorriu sob o sol generoso.

No jardim da nova residência presidencial, entre helicônias e orquídeas raras, uma escultura singular chamava a atenção: um ninho gigante, tecido em fios dourados, repousava sobre o galho de uma gameleira secular. Dentro dele, um grande ovo de cristal branco facetado capturava a luz da manhã, cintilando com uma frieza preciosa. A peça fora um presente anônimo no dia da posse. Os visitantes comentavam sua beleza, mas ninguém percebia a metáfora que ali pousava, imóvel e dourada, no coração do poder.

Mas a outra face da moeda revelou-se cruel. A inflação, aquela fera adormecida, despertou com fome. O Banco Central, pressionado pelo descontrole fiscal e por sussurros vindos dos corredores do Banco Senior, elevou os juros a alturas nunca vistas. O pão encareceu, o crédito secou, as fábricas cerraram portas. O Bananal mergulhou numa crise que tinha gosto amargo de decepção.

Nas altas torres de vidro do Banco Senior, porém, o clima era de celebração discreta. As apostas feitas no segredo renderam lucros colossais. Astúcio brindou com seus diretores, e o nome de Egghead foi pronunciado com respeito quase religioso. Enquanto o povo perdia, eles ganhavam. Era a matemática cruel dos que sabem o futuro antes dos outros.

Mas Egghead não descansou. Sabia que eleições são ciclos, e que a verdadeira vitória está em perpetuar o poder. Usando a OSEB como sua espada e o regimento eleitoral como sua lei, começou a declarar inelegíveis, um a um, os adversários de Molusco. O Professor Modesto foi o primeiro, acusado de abuso de poder econômico por uma doação de campanha obscura. Líderes populares, prefeitos carismáticos, vozes críticas – todas foram silenciadas pela letra fria da lei, interpretada pelas mãos quentes de Egghead.

Anos mais tarde, já aposentado em sua mansão rodeada de jardins, Alex Egghead recebeu a visita de um jovem repórter. O rapaz, filho da crise, ousou perguntar sobre imparcialidade, sobre justiça, sobre o peso das escolhas. Egghead olhou para suas orquídeas, regadas com água pura de nascente, e respondeu com a calma de quem fala de coisas naturais. “A democracia, meu caro, é como um jardim. Alguns plantam, outros regam, outros colhem. Eu nunca roubei um fruto. Apenas cuidei para que as sementes certas germinassem.”

Naquele mesmo dia, passando em frente ao antigo palácio presidencial, o repórter avistou através dos portões a escultura do ninho dourado. O sol da tarde incidia sobre o ovo de cristal, produzindo reflexos que pareciam cortar a luz. Ele entendeu, então, que alguns pássaros não cantam, construem silenciosamente seus ninhos com o ouro alheio e neles chocam ovos transparentes onde se pode ver, cristalino, o vazio do que poderia ter sido.

O repórter saiu sem a grande confissão que esperava. Mas sozinho em seu escritório, Egghead escreveu no diário que queimaria ao morrer: “Será crime regar a planta que dá sombra a muitos e frutos a alguns? O sol brilha para todos, mas algumas varandas estão melhor voltadas para seu calor.”

Do lado de fora, sob o mesmo sol que testemunhara todas as eleições do Bananal, as pessoas faziam fila para o pão caro, olhavam para os cartazes desbotados de Molusco ainda pregados nos muros, e seguiam em frente. A democracia continuava, as urnas sagradas permaneciam incontestáveis, e o triângulo de poder, feito de palavras, de influência e de ouro, seguia moldando silenciosamente o destino da nação, eleição após eleição, no eterno ciclo das estações políticas, enquanto no jardim do poder um ninho dourado guardava, intacta, a promessa vazia de um voo que nunca aconteceria.


Estrela Destra

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